10 de fev. de 2009

"...o amor é um nobre ofício, o amor é um bom negócio."

(Viver de amor, Chico Buarque de Hollanda)

Na prática aprendi que o amor não tem laços com a desconfiança. Amor de pai, de mãe, de irmão, amor de sangue. Outros amores até podem ser, mas outros amores que são apenas afluentes do amor que nos é oferecido incondicionalmente assim que gritamos a primeira vez para o mundo. Amor hereditário, que já é dado e destinado a ser intransferível e com tendência apenas a se multiplicar por todos os anos que tivermos de vida. Ou ainda mais profundo e doloroso: amor que se tornará ainda maior, ainda mais obrigatório de se levar, se a lei da vida raptar alguns de nós na medida que o tempo se estende. Na vida e na morte o amor de sangue não se dispersa, não se confunde com outro sentimento, não ameniza, não diminui com as falhas e faltas de quem amamos. É o único amor que não exige absolutamente nada para acontecer: nós nascemos e já está ali, junto, forte, encantado.
Com o nascimento dos meus irmãos, comecei a julgar de que o amor que minha mãe tinha para os filhos, agora era divido em três, e que para mim tinha sobrado quase nada ou nem sobrado. Não, não é ciúme. Ciúme é um pouco mais mesquinho e frio do que desconfiar a falta do amor. Embora não deixe de ser tão egoísta desconfiar da força do amor materno.
Minhas certezas aumentaram quando saí de casa para morar sozinha. O trabalho e o estudo me consumiam a semana toda, e às vezes, os fins de semana. Minha mãe, apesar de não trabalhar fora, também era consumida pelas tarefas da casa, por cuidar dos meus irmãos menores e principalmente por passar horas procurando por um bom sorriso para receber meu pai todos os meios dias e os fins de tardes. Tive medo que o tempo para nós fosse se tornando o abismo entre nossas confidências e que aos poucos fossem eliminando o amor que ela tivesse por mim. Enquanto o meu amor por ela se tornava ainda maior, ainda mais admirado, ainda mais sedento do seu colo.
Em uma tarde de pleno verão de janeiro, liguei para ela avisando que iria visitá-la. Peguei a moto e não andei 500 metros até que um cara cortasse minha frente e me fizesse mergulhar contra o asfalto. Rolei até parar sentada, a primeira coisa que pedi era para que ligassem para minha mãe. Parece que foi em um piscar de olhos que vi seu carro quase que flutuando sobre a rua até o meu encontro. Quando ela me viu pulou do carro, ligado mesmo, com as roupas que as tarefas de casa lhe emprestavam, com o rosto como se fosse uma lágrima enorme. Agora eu podia chorar, as dores então vieram, as feridas ardiam e manchavam o chão do sangue vermelho bonito que herdei de minha mãe. Não tinha mais medo, minha mãe trouxe seu amor para me embalar, para fazer os primeiros e indispensáveis socorros. Estava tudo bem, percebi que se eu morresse ali, metade de minha mãe sobreviveria para levar meus irmãos por suas vidas, a outra se manteria viva para matá-la devagar e sufocantemente, para beijar sua face e lembrá-la de minha ausência.
Logo voltei para casa, sabia que nada mais me tiraria dos braços longos e cuidadosos que minha mãe me estendia. Nunca soube nada do amor, dos seus poderes, da sua grandiosidade, da sua capacidade de aproximar as pessoas. Talvez eu nunca venha a descobrir. A única que sei, é que o amor da minha mãe me salvou, não apenas do medo de morrer, mas sim de ter partido sem reconhecê-lo.


(Cáh Morandi)