16 de nov. de 2008

"Ah, você está vendo só do jeito que eu fiquei e que tudo ficou..."

(Título: Por causa de você, Tom Jobim e Dolores Duran)
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Um homem me olha do outro lado da rua, não sei se ele sabe, mas eu também o olho. Discretos, nenhum movimento brusco, nenhum cruzar de olhares, nada pode atrapalhar esse eu-sei-que-você-me-olha-mas-vou-fingir-que-não-sei. Ele olha com um olhar típico 43, fatal, seria fixo se ele não quisesse disfarçar. Eu o olho por sobre o livro e quando mudo a posição das pernas. Não sou bonita. Ele não é bonito. Mas ele carrega uma sacola ecológica e eu estou lendo um livro de Lya Luft. Ele tem uma tatuagem de São Jorge nos braços, será que ele acredita em São Jorge? Sim, por que eu tenho um lírio tatuado nas costas, mas não tenho fé em lírios. Ou quem sabe ele tenha fé e eu seja uma descrente: meu lírio não opera milagres e nem atende preces.
Ele podia atravessar a rua, sentar do meu lado e puxar assunto. Eu estou debaixo da sombra de uma árvore no parque, ele está do lado de um pipoqueiro. Ele podia me trazer uma pipoca se fosse meu namorado. Ou apenas podia ser meu namorado. Ou apenas podia me trazer uma pipoca. Não consigo me concentrar nas poesias de Lya, marco a página 33 do livro com um poema que começa assim: “A esperança me chama, e eu salto a bordo como se fosse a primeira viagem...”. Isso é um ato de querer lembrar, se aquele homem for embora agora, dei a ele o poema da página 33, e dei ao poema um rosto, um nome e uma história de alguém que não conheço. O que ele fará para não me esquecer se eu levantar e ir embora? Colocará essa imagem da praça no braço sem tatuagem ou sentirá o cheiro de pipoca até lembrar meus gestos? Dará um nome do tipo “a desconhecida” para esse banco? Quem sabe daqui uns dias ou anos nos esqueceremos dessa manhã, como as outras manhãs que cruzamos olhares com estranhos, como outras manhãs que saímos para ler um poema ou levar alguma coisa em uma sacola ecológica. Não faz mal, nós não tínhamos planos para o futuro e não juramos falsas promessas do tipo nunca vou te esquecer. Não temos tratos, não temos laços. Tivemos alguns minutos de curiosidade. Vou embora, isso já passou. Talvez era para eu dar mais atenção à aquele estranho, talvez fosse importante, mas me levanto e caminho sem culpa: há muito tempo importância e seus derivados mudam de significados em minha mente.

2 comentários:

Adriana Lemoz disse...

olá!
Que delícia ler esta sua crônica! Já tá um pouco tarde e há horas estou em frente ao computador trabalhando...mas vou me deitar pensando na sua estoria, pois já vivi algo como o que vc viveu naquela praça.

Finalmente encontrei alguem q escreveu uma coisa parecida com q já vivi - mas que nao tenho o jeito pra escrever! rsrsr.

O que acha da ideia de fazer um curta?

Se estiver interessada,me manda um email para adriana.lemoz@yahoo.com.br

um abraço. Já está em meus favoritos pra ler de vez em quando!
drops de alegria sao as cronicas no meu dia a dia!

Adriana Lemoz disse...
Este comentário foi removido pelo autor.