28 de nov. de 2008

"Em pouco tempo não serás mais o que és..."

(Título: O Mundo é um moinho, Cartola)
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Lembro da vez que pressenti que nunca mais iria voltar. Eu estava em casa, era quase sete da noite e agosto terminava. Não lembro do dia e nem do ano, mas embora fosse uma quarta-feira quero lhe contar que foi em um domingo. Os domingos são os dias mais decisivos, mais solitários e mais delicados para se escrever. Então prefiro acreditar que fui embora em um domingo, fica mais bonito assim.
Eu tomava uma xícara de café debruçada na janela, vendo as luzes da cidade se acenderem uma atrás das outras, prédio por prédio, casa por casa, carro por carro. Ele estava no sofá mudando os canais da tevê como quem não se prende a nada. Eu lhe falava das luzes que estavam acendendo, de como era bonito e melancólico aquele laranja que vai se dispersando com o fim do dia, dando vagarosamente espaço à noite. Até que tudo foi ficando tão escuro e o café tão frio, e não reconheci mais aquele homem na sala, nem aquela cidade e caminhei perdida até um espelho: eu também já não me reconhecia.
Chega um dia em que perdemos a nossa identidade, tudo que nossos pais nos ensinaram, tudo que antes julgávamos importante, todo o nosso narcisismo, nossa vã inteligência, nosso egocentrismo, religiosidade ou falta de crença, nossos sonhos de criança, nossas bestialidades adolescentes.
Você até pensa que está sentindo medo, mas não é medo. Depois você percebe que foi apenas uma turbulência, por que você acabou de começar a voar e não vai adiantar nenhum tipo de desespero. O que vai te levar ao abismo ou ao céu vai ser aquilo que você vai decidir no início do vôo: a firmeza ou a insegurança. E depois não há mais volta.
Esteja atento, não há nenhum aviso prévio, nenhum sintoma antecedente. Quase nem vai lembrar de muitas coisas, apenas da última vez que esteve sobre a plataforma, da última vez que sugou o ar, da última luz que acendia na cidade. Sempre será assim, fazemos as coisas de forma diferente, quando as fazemos a última vez.
Há apenas um dia decisivo em toda nossa vida: aquele em que optamos por nosso futuro. É o dia do vôo. Tudo que vivermos depois da escolha e do salto, será nossa vida inteira.
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(Cáh Morandi)

10 comentários:

Fillipe Jardim disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Fillipe Jardim disse...

Maravilhosa crônica! Você tem talento para a narrativa, parabéns! Parece o texto de alguém que, procurando a si mesmo no resto do mundo, perde-se na própria profundidade. Gostei mesmo. Parabéns.

*Uma dica: ascender é um sinônimo de "subir". A palavra correta é acender.

Beijos!

Cáh Morandi disse...

Bem notado Fillipe, obrigada!

Unknown disse...

Linda,

Como sempre maravilhoso o que escreveu!!!
Que Deus te dê, sempre, muita inspiração pq é com ela q vc alimenta nossa alma.
Beijos

Dinarah Ribeiro disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Dinarah Ribeiro disse...

oi linda sem palavras para descrever o que sentí ao ler esta crônica esta maravilhosa como sempre adoro seu trabalho...!bjinhos

Anônimo disse...

maravilha, Cáh! vc é dez.

Lalo Oliveira disse...

Gostei do texto, Cáh. Das analogias e tudo mais.
Um dia, inevitavelmente, todos precisamos voar. hehe

Beijo!

www.poeses.blogspot.com

Flávio Almeida disse...

E bem-vinda as suas belas asas coloridas!;)
bjs

Regis Passos disse...

adorei "voar" nas entrelinhas e me reconhecer em cada gota respingada... parabéns